segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

E PRECISO AVANÇAR MESMO AOS TROPEÇO

A vida é cheia de acontecimentos ininteligíveis, o que nos leva, não raro, a mergulhar fundo no universo do desencanto. É aí que surgem os poetas, com o seu manejo singular das palavras. Porque as palavras, já o afirmara Sartre, não se limitam a ser instrumentos práticos de comunicação. O poder da palavra decorre da sua possibilidade de transfigurar o mundo, mais do que oprimi-lo. O poeta é um homem perplexo que nos faz olhar o mundo e a realidade de forma mais apurada, mais crítica.

O poeta (leia-se o escritor) não se limita a nos mostrar as coisas, ele nos faz vê-las. Por isso, poetas e escritores são devoradores de textos, o que os torna capazes de desconfiar das fantasias e de certas teorias propagadas pelos livros. Daniel Piza, articulista de O Estado de S. Paulo, nos adverte: a literatura não foi feita para tomar o lugar da vida, da experiência real, mas para iluminá-las (vida e experiência real). E cita o ensaísta russo Tzvetan Todorov, que afirmou: "a literatura permite que cada um responda melhor à sua vocação de ser humano".

Para Todorov, a ficção se aproxima da ciência, complementando-a, enquanto instrumento de interpretação da realidade, da natureza humana. Por isso, o autor não tolera a ideia, assente entre certos professores e certos críticos, de uma análise da literatura desconectada da vida, dos grandes temas da condição humana, uma análise da literatura que ignora o contexto humano, reduzindo-a apenas a jogos de linguagem. A matéria da literatura é a carnalidade do cotidiano das pessoas. É inegável o fato de que muitos livros nasceram da necessidade brutal de se entender uma perda irreparável, um amor extremo ou a inevitável finitude. A escrita ajuda-nos a suportar a realidade, a atravessar experiências difíceis, a solidão, o vazio, a morte.

Portanto, a escrita e a imaginação têm um poder maiúsculo. Daí decorre o grande interesse dos regimes autoritários em obrigar-nos a ignorar, a só conhecer o que desejam que conheçamos. A literatura nos incita a burlar os regimes de exceção, a ler sem medo das consequências, a ler como quem caminha sobre uma corda bamba, sem cair, sem medo de avançar. O filósofo Marcuse já dizia: a arte não pode ser um espaço de prazer confinado no interior do indivíduo. A arte não pode servir apenas de remédio, de alívio ao cotidiano opressor, de manipulação das consciências. A literatura, portanto, não pode ser apenas um consolo nesse mundo mergulhado na agonia, na perplexidade, na barbárie, travestida de civilização.

É certo que a escritura não esgota o real. Nem tampouco a ciência o faz. Haverá sempre um hiato entre o que se busca e o que se encontra. Mas o escritor, no seu ato solitário de escrever, ensaia pequenas verdades, provisórias, envoltas sempre em zonas de sombra, que o desafiam a prosseguir sempre. Inúmeras são, portanto, as funções da escrita. Freud, que manteve com o amigo Wilhelm Fliess uma correspondência de longos anos, fez de sua escrita uma estratégia de investigação, que resultou na construção da teoria psicanalítica.

É isso, leitor amigo. Abramos espaço em nossas vidas à literatura, à sensibilidade. Concentremo-nos em perseguir o que é grandioso, o que nos transcende, o que nos faz avançar, ainda que aos tropeções. Com Lygia Fagundes Telles, acreditemos na permanência da palavra escrita, que é a negação da própria morte.

BJKS DA VANN

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