quinta-feira, 8 de julho de 2010

ESPERTEZA

Aquele pecado ele não diz nem a sua mãe, nem ao melhor amigo, nem mesmo ao terapeuta. No seu entender são deslizes pequenos que somem no meio de erros mais graves, mas não conta o que faz. Diante de suas ações, pensa em como seriam no íntimo as outras pessoas, aquelas muito finas, adestradas para se comportarem impecavelmente em público, com uma indiscutível habilidade para usar os talheres. Como agiriam em seus momentos humanos?

Esse homem é educado, faz de conta que cumpre as normas do bem conviver em sociedade, mas se solta além do razoável quando não tem ninguém ou nenhuma câmera olhando. Não acontece propriamente uma transformação do médico em monstro, mas quase. Acha bom sair da linha de observação dos demais, estar livre do olho eletrônico, numa liberdade ampliada.

Enquanto prepara alguma coisa para comer, ouvindo a TV ao longe, toma cerveja, bebe o líquido em grandes goles, arrota, fazendo grandes estrondos que o animam e o fazem rir. Pensa na ex-mulher e em como seria impossível fazer isso sem levar uma dura reprimenda. Em raras ocasiões baixa nele um quase troglodita. Enche a boca e fala sozinho, sem ligar para os fragmentos alimentares voando, fora do alcance da censura alheia. São pecadilhos inocentes.

Dá risada ao pensar numa celebridade com dificuldades intestinais, e também se diverte em ambientes sociais sérios, imaginando as pessoas presentes praticando sexo. O pensamento estranho ao ambiente o distrai em reuniões maçantes. E se regozija nesse prazer. Gosta de estar só para usar o banheiro sem fechar a porta. Sente-se bem longe de convenções e livre para soltar os gases do seu metabolismo. Nada além de um adulto com ideias imaturas.

Usa um produto e depois o devolve, alegando estar com defeito. No mercado conta dúzias de treze ou catorze unidades. Algumas vezes extrapola, vai além da transgressão e flerta com transtornos de conduta. Estaciona em local proibido, passa no sinal fechado, bebe e dirige. Quando recebe um dinheiro a mais, não o devolve. Sente-se bem em desobedecer a normas, algumas atitudes próximas ao delito, mas ainda assim não as imagina como crimes.

Percebe que essas ações erradas estão se tornando um vício. Quer levar vantagem, ganhar mais, não perder nunca, estar à frente dos outros. Ter um pouco mais do que realmente merece. Sabe que isso pode sair do seu controle, mas se sente bem, agindo assim. Nem pensa em evitar esses comportamentos.

Procura escapulir dos impostos. Tem uma alegria infantil em ganhar alguma coisa, mesmo pequena, especialmente quando não é merecida. E justifica-se pensando que é melhor ser considerado esperto do que coitado. Afinal, ninguém sabe muito a seu respeito, não se mostra, e justifica que os certinhos não ganham muito por agirem corretamente.

Entrar sem pagar, levar alguma coisa que não é sua, mas que ninguém irá reparar. Coisas de repartição ou de empresas grandes são um convite a sua mão esperta. Pensa que são migalhas e que sendo assim, que mal há? Tem um milhão, quem vai sentir falta disso? Assim, a sua lógica não o incomoda. Não se reprime e nem sente culpas. Entende ser apenas um modo de viver.

Para esse homem, as suas leis podem ser ampliadas para os demais. Não patenteou seu modus operandi, e assim não liga se outro assume seus hábitos. Encarar, conquistar a mulher alheia, usar de atitudes desleais para roubar uma ideia, utilizar-se dela sem dar os respectivos créditos, fazem parte da sua cartilha. Dar o preço de acordo com a cara do freguês é mais um dos seus expedientes. Também não cumpre prazos e nem mesmo faz os trabalhos combinados. Dar uma de desentendido não faz mal. A lista não termina, e a cada dia há mais novidades.

Aonde isso vai terminar? Avançará cada vez mais no alheio? Algum dia será alcançado pela punição? A psiquiatria poderá ter algumas respostas, ou nenhuma delas. Resumindo: a esperteza comeu o gato; ou o gato comeu a esperteza?

BJKS

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