quarta-feira, 15 de abril de 2009

BRILHO FUGAZ DE UMA MENTE REPLETA DE LEMBRANÇAS-TEXTO DE DÉLIO PINHEIRO

( AMIGOS QUERIDOS DA UMA ESPIADINHA NO BLOG DO MEU QUERIDO AMIGO DÉLIO,E A COISA MAIS GOSTOSA ...HISTORIAS FACINANTES!VAI LÁ E Ñ DESGRUDA VIU!)RSRS

Délio Pinheiro
Jornalista e acadêmico de Direito
www.deliopinheiro.blogger.com.br

A tarde de primavera que avança ruidosa para as trevas da noite, parece se liquefazer, tamanha é a quantidade de água que cai das nuvens negras na fazenda distante da civilização de onde Sandoval a contempla, absorto e saudoso. Seu coração de matuto também troveja na mesma cadência da tempestade, e também se liquefaz de saudade de um tempo impreciso de sua infância, quando descobriu o doce mourejar da água da chuva, que escoava pela bica diretamente em seu corpo de criança, e do cheiro inebriante do biscoito de chuva que sua saudosa mãe fritava no fogão a lenha em dias longínquos como aquele que ele observava de sua janela.

O cheiro de terra molhada se confundia com o cheiro do quitute e ainda se misturava ao cheiro de afeto, quase palpável, em sua doce lembrança da meninice vivida ali mesmo, naquele sítio bem cuidado, mas ainda assim esquecido.

Sandoval jamais ouviu falar de Aubrey de Grey, e certamente este jamais saberá quem é nosso matuto, que vive na região de Claraval, município de Montes Claros, no norte das Minas Gerais. Grey é um brilhante cientista que acredita que o ser humano pode um dia ser imortal, ou, numa perspectiva menos otimista, viver alguns séculos com saúde e viço. Ele trabalha, em seu laboratório londrino, tentando reverter os processos químicos que desencadeiam os danos que ocorrem às células de nosso organismo, evitando assim o envelhecimento e a morte celular.

Seria a descoberta do milênio. A chave que nos permitiria prolongar a juventude por tempo indeterminado e que rejuvesceria nossos velhos como no conto de F. Scott Fitzgerald, que recentemente chegou às telonas do cinema. Milhares de Benjamins Buttons remoçariam a cada dia, e nem seria preciso vender a alma, como fez um quase homônimo do cientista, o belo Dorian Gray. A descoberta estaria aí, a princípio caríssima, mas depois disponível até mesmo para os Sandovais da vida.

Basta lembrar que muito em breve, segundo pares de Aubrey Grey, por algo em torno de quatrocentos reais, qualquer ser humano poderá ter seu genoma decifrado. Antigamente seria impossível quantificar um procedimento desses para um reles mortal, mas hoje é perfeitamente crível. Portanto, é uma questão de tempo e esperança até que o doutor Grey consiga êxito em seus objetivos instigantes. Decifrar nosso código genético nos pouparia de doenças como o câncer, que seria tratado antes mesmo de se manifestar.

Sandoval talvez nunca saiba de algo assim. Seu único vínculo com o mundo é um rádio de pilha constantemente ligado nas emissoras AM de Montes Claros, com suas modas de viola ao cair da tarde.

Mas naquele momento o único ruído que se nota em seu humilde rancho é o farfalhar da chuva, que tem o poder de transportá-lo para dias amenos, longe da lembrança atroz que o empréstimo não saudado com o banco lhe provoca e da dor da perda de sua amada, tão recente e amarga, que lhe assalta repentinamente.

Lágrimas espessas, quase do tamanho dos pingos da chuva, brotam-lhe da mais recôndita esquina de sua alma sertaneja, quando se dá conta que a noite escura e sem estrelas, que se sobressai, será na mais completa solidão.

Não, Sandoval nem desconfia que nos Estados Unidos um grupo de pesquisadores acredita que em breve será possível apagar de nossas mentes todas as lembranças ruins, alterando uma enzima misteriosa que existe em nosso cérebro. As mentes brilhantes de lá fizeram os experimentos em ratos e os resultados foram animadores. Os pobres roedores se esqueciam de seu sofrimento e viviam seus dias confinados na mais absoluta felicidade artificial.

Humanos e ratos tem muito em comum, portanto é uma questão de tempo, e possivelmente dinheiro, para apagar de nossas lembranças os momentos de desgosto, de ingratidão e de inveja que vivemos em nosso cotidiano, e também apagar para sempre a dor lancinante de perder um ente querido ou mesmo de ver nosso time do coração ser rebaixado para a segunda divisão.

Mas o que seria de nós, talvez perguntasse Sandoval, se um dia soubesse dessas coisas que relato, vivendo sem data para nos encantarmos, absolutamente errantes e desumanizados?

O que nos confere alguma virtude é o fato de sabermos nossas limitações. É o estranho dom de perceber que dia menos dia, talvez numa tarde chuvosa como aquela, como um sinal inequívoco de boa sorte, partiremos rumo ao desconhecido. Isso torna a vida um assombro e um milagre que precisa ser saboreado com ardor.

Pensando bem, o doutor Grey e os cientistas americanos deveriam conhecer Sandoval, um brasileiro como tantos outros: que ri ao se recordar da infância feliz e que chora quando se lembra das perdas que teve ao longo da vida atribulada. Mas que, ao anoitecer, e com a chegada pacificadora do estio, matuta que ainda pode haver uma esperança, desde que o fruto nasça graúdo, que o produto tenha preço no Mercado Municipal e que o banco, como em um milagre divino, o anistie de seus débitos.

Uma vida cingida em meio à tempestade, mas que vale a pena justamente devido a alguns lampejos, como os relâmpagos que alumiam as trevas e refletem, mesmo que num átimo, sua beleza complexa. Uma vida humana tem Sandoval, demasiadamente humana.

BJKS DA VAN

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