segunda-feira, 8 de novembro de 2010

A ARTE DE ESCREVER


Volta e meia aparecem manuais sobre a arte de escrever. Estão também na moda as chamadas Oficinas de Escrita Criativa. E então proliferam os escritores. Todos, ou quase todos, donos de um estilo puro, limpo, ordenado; autores destinados a figurar no quadro de honra de qualquer escola de ensino fundamental ou médio.

É preciso reconhecer, todavia, que, além de um grande talento, o escritor é um sujeito cheio de defeitos e conflitos, dotado de uma rebeldia que assusta e fascina. A marca de todo bom escritor é transformar em literatura sua experiência pessoal, sobretudo naquilo que ela nada tem de edificante.

Não se produzem mais escritores como Flaubert, Proust, Simenon ou, para ficar com os nossos, Machado de Assis, Guimarães Rosa, Clarice Lispector. Por uma razão simples: a humanidade piorou, a estupidez cresce a cada dia, assumindo proporções assustadoras. Gustave Flaubert já o previra, nos idos de 1850, quando afirmou que o mundo se tornaria imbecil. Acertou “na mosca”. Atualmente, a própria escola estimula, quando não supervaloriza, a cultura da superficialidade, colhida e alimentada nos sites de pesquisa rápida da Internet.

Noutras sendas caminha o escritor talentoso, cuja obra põe a nu a fragilidade nossa de cada dia: estamos todos à mercê de forças que nos ultrapassam. Navegamos à deriva, em mar aberto, sem mapa e sem bússola, invadidos pela inquietação e pelo medo. Nenhuma Internet à vista, nenhum Google, nenhuma Wikepédia. E, então, agimos como órfãos, prisioneiros das trevas do não saber, enlutados pela perda das referências confortadoras.

Entretanto, nada nos é mais necessário que o rompimento com o conhecido, o rotineiro, para que possamos enxergar o sentido, ou o não sentido, do que estamos fazendo. A frustração, a aparente derrota, pode ser a medida que faltava para a necessária travessia do deserto – única condição para a tomada de consciência da efemeridade: nossa, das coisas, das pretensas verdades instituídas.

Isso é o que o autor talentoso consegue fazer: mostrar-nos o avesso das coisas, o lado menos luminoso da vida, pontuando os monstros que habitam nossa interioridade, nossa certeza, sempre camuflada, de que a vida é uma batalha dolorosa e insensata. O escritor talentoso revela-nos a tristeza da alma, o vazio da rotina, nossas tentativas inúteis de calar o desassossego, através de rituais vazios, festas barulhentas, mesa farta, bebidas em abundância, que só fazem apontar a mesma coisa: somos estrangeiros na nossa própria alma.

Sem vontade de viver, de cantar em coro, alguns escapam pela tangente e... enlouquecem – põem-se a delirar, a alucinar, já que não encontram alívio para suas feridas emocionais, que estão abertas e sangram.

Quando a angústia se torna assustadora, há que sair, tateando, em busca de alguma saída, pois, paradoxalmente, tal busca pode tornar o vazio tolerável e, quem sabe, até encantador.

Superando a ilusão de ser dona da verdade, da clareza, da autoridade, a literatura pode ser a saída possível, uma vez que ela coloca em textos, passíveis de leitura e ruminação, a dimensão simbólica da nossa existência, permitindo-nos compreender, sentir, sofrer e suportar os impasses existenciais, inaugurando a necessária liberdade psíquica para lidarmos com o desejo e a lei: Como se os Céus fossem um Sino / E o Ser apenas um Ouvido, / E eu e o Silêncio, a estranha Raça / Só, naufragada, aqui - / Partiu-se a Tábua em minha Mente / E eu fui cair de Chão em Chão - / E em cada Chão havia um Mundo / E terminei Sabendo – então. (Emily Dickinson)

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