sábado, 28 de maio de 2011

SACO CHEIO




Sei lá, mas acho que ando ficando de saco cheio. Durante toda a minha vida, me exigiram ser boa em tudo. Boa mãe, boa esposa, boa filha, boa profissional, boa de cama, etc. Qualquer psicólogo (a) teria uma resposta direta sobre a questão: é humanamente impossível ser bom em tudo. Mas a sociedade nos cobra isso diariamente. Nos sufocam de uma forma mortal. Assim, não é muito fácil chegar à conclusão de que não é mais possível ser “autêntica”. Palavra batida essa (autêntica), já depois de tantas ilusões filosóficas, psicológicas e libertárias a respeito, mas que de momento me serve para desconstruir-me para vocês.

Já há alguns anos acordo pela manhã, quase sempre mal-humorada (por ter que levantar e ir trabalhar em um país em que o trabalho inútil é por pouco dinheiro e com muita encheção de saco), e sei que vou ter logo em seguida que bancar uma das personagens que agrade aos meus exigentes personagens do dia-a-dia e, conseqüentemente, me traga a possibilidade de uma sobrevivência cotidiana facilitada. Ou, simplificanda: ao acordar sei que terei que fingir ser quem não sou até o ponto de tornar-me, por horas, verdadeiramente esta outra, para ter das pessoas o que preciso. E neste precisar está incluído tudo.

Sempre foi assim, e sei que quase todos me dirão o mesmo: é o nosso teatro social e inevitável, day by day. Bem, mas vejamos antes a rotina de uma típica brasileira de classe média, que tem que se adaptar às demandas das pessoas ao seu redor para não se tornar 100% em escrota (para quem não entendeu bem, tornar-se uma filha da puta, uma destas a que todos têm raiva ou querem distância).

Em primeiro lugar, felizmente, muito felizmente, trago muitos resquícios, em meus modos espontâneos de comportamento e expressões, de quando eu era uma garotinha e adolescente razoavelmente dócil, cordial, amistosa, realmente simpática, que cativava as pessoas que gostavam de alguém bonzinho.Tive uma infância familiar cristã. E, com o passar dos anos, fui obrigado a manter (raras vezes ainda espontaneamente, a maior parte do tempo sabendo que estou fingindo) uma teatralização de bondade e preocupação solidária com meu semelhante. Caras e bocas de preocupação com o seu bem-estar, com as infinitas mazelas sociais que o afligem, com o fato de não querer humilhá-lo nem tratá-lo mal em encontros fortuitos em supermercados, farmácias (o brasileiro adora uma farmácia), ou em qualquer lugar.

Para sobreviver financeiramente, não tenho dúvida: este lado de uma bondade cristã que ainda reluz em meu brilho dos olhos é realmente útil. Espero que dure muito ainda, embora eu já tenha sérias dúvidas se este personagem vai longe. Essencialmente eu sei que ele não faz mais parte de mim. Às vezes rio cinicamente por dentro enquanto meu ar de bondade cativa àqueles que só conseguem ver em mim o que querem ou que conseguem. Rio principalmente das pessoas humanistas mais ingênuas e prepotentes, que acham que conseguem sentir a “essência” dos outros ao olhá-los nos olhos, para saber se é realmente “do bem”. Só mesmo rindo! Chega a ser triste agora que penso a respeito, mas é assim que acontece. O cinismo está no ar e tem dado a tônica da vida pública brasileira. Nem o condeno mais...

Já eu tento não voltar a ter qualquer coisa que pareça alguma essência com obrigação de durar no tempo. Já tentei várias vezes, e tudo que encontrei ao final de meses ou anos foi ver-me tentando ser o que não sou. Acho que sou mesmo uma típica brasileira. Pra quem ainda vive no mundo das fantasias ufanistas a respeito dessa merda, é fruto de uma reunião de culturas que se digladiaram durante alguns séculos até resultar no que sobrou: esse povo-nada, que se autodestrói lentamente à medida que continua a ser sugado pelas demais culturas canibais do mundo.

Talvez apenas aí eu seja alguém: uma brasileira típica; uma humana típica, de alma boa, de espírito por vezes vazio, de essência, de coerência. Apenas sigo adiante, por vontades e desejos que não compreendo e dos quais sou apenas uma serva. Por mim mesmo eu parava e ficava só olhando esse caótico caldeirão de ilusões. Mas infelizmente faço parte dele, e preciso fingir dentro das ilusões alheias e também dentro das minhas. Ser guerreira(o) não exige perfeição. Ou vitória. Ou invulnerabilidade. Uma guerreira(o) é vulnerabilidade absoluta. Essa é a única coragem de verdade... A vida é uma escolha. Você pode escolher ser uma vítima ou qualquer outra coisa que deseje. Uma guerreira(o) age e uma boba(o) reage. Não há começar e parar. Apenas fazer.

Charles Chaplin definia assim a vida: “A coisa mais injusta sobre a vida é a maneira como ela termina. Eu acho que o verdadeiro ciclo da vida está todo de trás pra frente. Nós deveríamos morrer primeiro, nos livrar logo disso. Daí viver num asilo, até ser chutado pra fora de lá por estar muito novo. Ganhar um relógio de ouro e ir trabalhar. Então você trabalha 40 anos até ficar novo o bastante pra poder aproveitar sua aposentadoria. Aí você curte tudo, bebe bastante álcool, faz festas e se prepara para a faculdade. Você vai para colégio, tem várias namoradas, vira criança, não tem nenhuma responsabilidade, se torna um bebezinho de colo, volta pro útero da mãe, passa seus últimos nove meses de vida flutuando. E termina tudo com um ótimo orgasmo! Não seria perfeito?”.

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