segunda-feira, 6 de outubro de 2008

AUTOR::DÉLIO PINHEIRO:: A SOCIALITE

A socialite


O corpo inanimado tombou pesadamente no tapete felpudo, que ficara opaco graças às constantes idas à lavanderia. Jatos de vômitos eram freqüentes no tapete, mas nada se comparava ao sangue espesso que jorrava indômito do ventre alvejado de Beatriz. Os últimos convidados da festa daquela noite tinham saído há quase meia hora, e os primeiros vapores do amanhecer desprendiam-se no horizonte crispado de poluição na cidade adormecida.

Muitos abaixo-assinados dos vizinhos do prédio tentaram acabar com as festas barulhentas da moradora do 503, mas nada tinha a impedido de continuar virando noites comemorando não se sabe bem o quê. Os amigos nunca deixavam de prestigiar as festas que, muitas vezes, terminavam em animados bacanais na sala de estar. O uísque, o papo existencial e a cocaína eram freqüentadores contumazes das festas de Bia Palazzo, a socialite que, desde a morte do marido rico, se comprazia em trocar o dia pela noite e receber em seu amplo apartamento toda sorte de gente, que aparecesse por lá, mesmo sem ninguém convidar. Mas naquela noite em que Bia fora alvejada por uma bala de revólver pouca gente comparecera. O fato de ser uma segunda-feira certamente corroborara para a baixa adesão dos outsiders que batiam ponto naquele bairro nobre.

Uma informação que certamente deveria estar no inquérito que apuraria a morte da moça: onze pessoas estiveram com ela na noite do crime, inclusive o famoso palestrante da cidade, Rosemberg Maia que, entre uma viagem e outra, aparecia no apartamento da socialite para “rever os amigos e falar uma bobagens”. Duas ou três garotas de programa também foram à festa, duas delas acompanhando o palestrante, que comemorava algum bom contato profissional, além de dois conhecidos da faculdade de biomedicina que Bia freqüentava de vez em quando. A sorte dela era que a faculdade pertencia a um deputado que não primava pela ética e fatalmente ela seria aprovada, caso não tivesse morrido, mesmo passando semanas sem aparecer por lá. Havia ainda umas duas pessoas desconhecidas, amigas da cabeleireira de Bia, ambas impressionadas com o luxo do apartamento. Se a polícia as revistasse depois da festa provavelmente encontrariam diversas lembrancinhas da casa, como cinzeiros de cristal, conjuntos de maquiagem e xampus surrupiados do banheiro. Mas daí a apontar uma delas como autora do assassinato já era um pouco demais. Na festa também tinha três brutamontes da academia que Bia freqüentava, um sujeito mal encarado que fazia bicos como encanador para a socialite e uma prima maluca da anfitriã, que às vezes morava vários dias no apartamento até que Bia a mandava de volta para a cidade pequena em que morava com os avós.

Das onze pessoas pelo menos uma voltara ao apartamento, pouco tempo depois da festa terminar, para disparar um projétil certeiro, que atravessara a barriga flácida da socialite e abrira um buraco na parede. Ninguém percebeu nada. Provavelmente o estampido tenha ocorrido no instante em que Bia ouvia música alta, Edith Piaf para ser o mais preciso possível, após mais uma noite de volúpia regada a champagne e cocaína e alguma dose de amargura, já que a anfitriã, mesmo cercada de tanta gente festeira, raramente era vista sorrindo. Ela cultivava um semblante fechado, com cara de poucos amigos e, analisando-a mais de perto, talvez não tivesse mesmo amigo nenhum, já que apenas o conforto das almofadas indianas, do álcool engarrafado há doze anos, das drogas fartas e das promessas de devassidão que as festas prometiam, levavam tantas pessoas a comemorar com ela seja lá o que comemoravam naquele amplo duplex.

O fato, insofismável, é que agora Bia era um peso morto, sem nenhum tipo de ironia. Um corpo acima do peso e esponjoso, com álcool e drogas se coagulando na estanque corrente sanguínea . Em breve seu corpo fétido atrairia a atenção dos vizinhos, que chamariam a PM, que encontraria o corpo inerte. Provavelmente um dos policiais não resistiria a tantos estímulos visuais e sensoriais e, na ausência breve do colega honesto, pegaria algumas notas graúdas de dinheiro no bolso da vítima. Na suíte da vítima, o colega honesto, que fora averiguar alguma pista, não se faria de rogado e pegaria algumas jóias da socialite e as enfiaria no bolso da farda. Mas teria que ser rápido, pois ele, afinal de contas, era honesto frente aos calhordas da corporação: “aquele bando de ladrão”.

No dia seguinte, com a chegada de algum familiar, provavelmente a prima amalucada, ficaria caracterizado o latrocínio. Alguém roubara a madame e depois disparara contra ela. Talvez a investigação até chegasse às duas bobinhas amigas da cabeleireira de Bia, ou talvez ninguém sequer se lembraria da presença delas por lá.

Dias depois a imprensa ainda reverberaria aquele assunto. Com algum otimismo a PM até chegaria a um suspeito: o porteiro. Claro, só pode ser ele. Mas depois de um mês mais ou menos o assunto sairia das pautas. A imprensa comprada da cidade já tinha novos crimes para esmiuçar. Em particular o cruel assassinato de um jovem de classe média que freqüentava as festas de Bia Palazzo, embora a PM, provavelmente, não daria conta daquele detalhe. Ele fora morto provavelmente por algum traficante. Acerto de contas, como tantos outros. Mas o rapaz era filho do promotor público da cidade e isso era suficiente para a morte ser explorada pelas próximas semanas. Logo o assassinato de Bia seria um assunto, digamos, morto. A comunidade do Orkut “Cadeia para o assassino de Bia Palazzo”, que no quente dos fatos chegou a ter 18 membros agora não passava de 10, menos até que a quase dúzia de festeiros naquela noite fatídica.

Mas isso ainda estava por vir, pois naquele momento em que sangrava, nos estertores de uma morte dolorosa, estranhamente confortada pelo tapete felpudo, ouvindo a voz rascante de Piaf, Bia sentia um alívio estranho. Antes de morrer ela esboçou um sorriso irônico e resignado. Em seu último esgar até teve ímpetos de fazer uma conta rápida, mas não teve tempo de fazer o inventário completo de quantos espertinhos infectou com aquele vírus mortal que levava consigo e que ela nunca dissera o nome, nem para si diante do espelho. Depois de tantas festas de arromba, onde ninguém sabia o que era comemorado, Bia Palazzo se lembrou, antes de dar seu último suspiro: mais de duzentos, certamente.

Música do dia: O novo disco do Coldplay
Citação do dia: “Se estão lendo Paulo Coelho em Paris vou ler Proust em Patis”- um aforismo de minha autoria
Filme do dia: O comovente Hotel Ruanda, que deveria se chamar “Hotel das Mil Colinas”.
Nota: Segue aí o mais novo material em áudio do Disco Virtual. Um especial com músicas ilícitas. Uma trilha sonora bem adequada para as festas de Bia Palazzo. Pode baixa e comentar.
004- Podcast: Músicas ilícitas

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