quarta-feira, 15 de outubro de 2008

A SUJEIRA ABSOLUTA NÃO EXISTE

Aquilo que, aos nossos olhos, é sujo ou limpo depende da cultura e do meio em que estamos inseridos. Além disso, o que descrevemos como sujo pode estar associado a nossos temores, sejam eles conscientes ou inconscientes, pois a aventura do inconsciente ocorre em toda e qualquer esfera de linguagem.

A antropóloga inglesa Mary Douglas, que morreu em maio do ano passado, explorou o tema da sujeira em vários de seus ensaios. Ela ficou mais conhecida após 1966, quando publicou “Pureza e Perigo”. Uma das frases que dão início ao livro é a seguinte: “A sujeira absoluta não existe: ela está nos olhos de quem a vê”. Nesse sentido, vale lembrar que a obra de Clarice Lispector também revela uma atração pelo feio, pelo sujo, pelo mal-formado, enredando suas personagens numa trama de perdição/salvação. Os textos de Lispector acenam para o processo de desvelamento proposto pela psicanálise, que nos convida ao mergulho “nos sujos quintais” de nosso mundo interior, pelo desatamento das máscaras simbolizadas pela dualidade: sujo/limpo, puro/impuro...

Para Mary Douglas, nossas crenças sobre limpeza e sujeira vão além das questões ligadas à higiene: ensaboar, escovar, lavar, colocar em ordem é um ritual que nos fala da necessidade de ordenar e reordenar nossa própria vida. Ao fazer isso: estamos separando, demarcando fronteiras, fazendo afirmações visíveis sobre o lar que pretendemos criar a partir da casa material.

Nossa tendência humana, enquanto grupo, é perceber como sujos, marginais e perigosos todos aqueles que fogem à nossa ordenação cultural de mundo, de sistema social. Dessa forma, enxergamos como “sujos” e marginais as prostitutas, os drogadictos, os homossexuais, os mendigos, os delinqüentes e assim por diante.

Mary Douglas viveu num país protestante (a Inglaterra), mas era católica e foi educada num colégio de freiras, o Sacred Heart (Coração Sagrado, em tradução livre), o que pode explicar seu interesse pela antropologia. A estudiosa realizou sua pesquisa de campo na África, mais especificamente no antigo Congo Belga, entre os leles, um povo que vivia da caça e do cultivo do milho.

Mas Mary Douglas tornou-se conhecida não só pela publicação de uma etnografia dos leles, mas, principalmente, por ter sido uma das primeiras antropólogas a descobrir que as técnicas e os métodos usados para estudar os povos ditos “primitivos” podiam ser usados com sucesso também no estudo das sociedades ditas modernas. Segundo a autora, conceitos como “tabu”, “poluição” e outros, utilizados na análise da mente de povos “primitivos”, podiam ser utilizados também na análise e compreensão da mente e do cotidiano do homem ocidental, dito civilizado. Que o digam os psicanalistas.

Para além dos conceitos de limpeza e sujeira, a obra de Mary Douglas está repleta de idéias originais que desafiam nossas convenções ilusórias e, sobretudo, podem ser úteis na compreensão do nosso mundo interno, bem como do mundo globalizado de hoje, cuja reordenação se faz num ritmo tão frenético e tão radical, que se torna difícil acompanhar (e aceitar) tantas e tão rápidas transformações.


bjks da van

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