domingo, 28 de setembro de 2008

A repentina clarividência

A repentina clarividência


Numa manhã qualquer todos no Brasil acordaram com um repentino discernimento. Tudo ficara claro, e para todos, em um fenômeno que diversas ciências tentariam explicar, sem muito êxito, nos dias seguintes. As especulações passariam de um novo plano de Deus para os homens até a utilização de nanotecnologia, possivelmente aspergida no ar em que respiramos ou diluída nos reservatórios de água do país.

Mas o fato é que todos os homens passaram a ver as coisas com clareza. É importante acrescentar que aquele era um ano de eleições municipais e este discernimento se manifestou diretamente nas decisões dos eleitores. De uma hora para outra, em um átimo, as pessoas passaram a ver os candidatos a vereador e a prefeito com os olhos da razão, sem nenhum tipo de preconceito ou opinião enraizada, e passou a enxergar seus projetos e seu caráter. Tudo ficou nítido, como a aurora daquele dia glorioso, que ficaria registrado em todos os livros de história do futuro. Mas naquele instante foram os jornais que documentaram o grande feito.

As conseqüências foram imediatas: de uma hora para outra, certos candidatos despencaram nos índices de aceitação e outros, que antes derrapavam nos índices, ascenderam meteoricamente. Tudo se deu porque de uma hora para outra, todos conseguiram identificar os bons candidatos, descartando aqueles que não eram merecedores dos votos. E isso não foi mágica, como alguns poderiam supor. Na verdade tudo se deu de forma bastante pragmática. O repentino discernimento teve pelo menos três etapas, todas elas incutidas no povo brasileiro sem nenhum motivo aparente.

A primeira foi a inclusão da reputação e do passado dos candidatos como fator determinante para a escolha. Alguns candidatos com episódios escusos em suas vidas pregressas e outros, comprovadamente desonestos em experiências administrativas anteriores, foram alijados da lista de possíveis candidatos. É como se todos passassem a conhecer um dos aforismos famosos de Oscar Wilde: “Ninguém é rico o suficiente para comprar o próprio passado”.

O segundo motivo foi que todos passaram a ler materiais antes relegados a simples arquivos mortos, os programas de governo. As discussões se tornaram acaloradas porque sobraram poucos homens públicos com os quais contar e foi essa plêiade de políticos que passou a figurar entre os mais votados.

O terceiro motivo foi justamente o fato dos eleitores não se prenderem mais a ideologias carcomidas, seguindo líderes torpes, populistas e desonestos, que se valiam da dinheirama para arregimentar seus seguidores e de notáveis carismas, lapidados em veículos de comunicação de massa. Tais mídias, e também factóides baratos, tinham o poder de aproximar certos candidatos das camadas pouco instruídas da população. Mas tudo isso foi extirpado, feito um câncer, de nosso convívio.

Neste dia todos os brasileiros, como se movidos estivessem por dons divinos, se tornaram cidadãos completos. Ninguém mais ousou se expor ao julgamento público tendo manchas em seus passados e sendo adeptos da corrupção, e os bons candidatos, em número sempre reduzido, se esforçavam em campanhas de altíssimo nível para convencer o eleitorado de seus predicados, e da viabilidade de suas propostas, todas elas discutidas nas “ágoras” modernas: as praças públicas e nos programas eleitorais.

Não demorou muito para que os homens perversos, que antes gozavam de certo prestígio, sobretudo na parcela desinformada da população, mudassem seu jeito de ser, e se regenerassem, e cada vez mais bons candidatos se apresentavam ao julgamento público. E os homens públicos de verdade, pouquíssimos nos albores do que ficou conhecido como “a repentina clarividência”, trataram de transformar o Brasil no “país do futuro”, um termo tantas vezes vaticinado e tantas vezes adiado. Esta utopia só foi possível com a completa extirpação da corrupção da vida pública.

E todos, como numa fábula de La Fontaine, viveram felizes para sempre, com o surgimento dessa consciência repentina, tão forte e modificadora, que teve as suas primeiras manifestações registradas por volta do mês de setembro no inesquecível e importante ano de 2008.

Autor::Délio pinheiro

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